Sempre que possível, ande descalço na terra, tome chuva, dê risada até doer a barriga...
Dentro de cada ser humano, mesmo ele adulto, existe uma criança, nomeada como “criança interior”. É aquela que muitas vezes se manifesta quando algumas experiências vividas na época da infância ainda não foram embora. É uma parte inconsciente da nossa mente que carrega necessidades insatisfeitas, emoções infantis sentidas e reprimidas, entre outros conteúdos.
Quem somos quando adulto, os nossos valores e princípios, foram construídos do relacionamento que tivemos com nossos pais ou com os cuidadores. Todas as vezes que esse adulto se relaciona com alguém, essa relação de alguma forma poderá trazer a dinâmica vivida com esses primeiros cuidadores e pais, pois nossa criança interior influenciará no “eu” adulto.
Um bebê, quando chega ao mundo, é um ser totalmente dependente e vulnerável. Vai aprendendo a se expressar, nomear seus sentimentos e suas emoções, e para tanto precisa da figura adulta para guiá-los diante de grandes emoções dessa fase infantil.
Querem e precisam ser vistos pelos pais. Quando nascem é como se fossem hóspedes que acabaram de chegar e, como os anfitriões, os pais (ou cuidadores) precisam cuidar muito bem deles. Esperam ser amados, necessitam ter suas necessidades básicas, carinho e atenção supridas. Muitas vezes, ouve-se falar que é preciso deixar os bebês chorarem para aprenderem a esperar, mas, esse não é o momento que uma criança irá aprender a se frustrar, é um pouco mais à frente. O bebê é sim o “reizinho” ou a “princesinha” da família.
Mas, essa criança que chega nasceu de pais que, na maioria, carregam seus próprios traumas não resolvidos, herdados de seus próprios pais. Com isso, já existe uma dificuldade deles em regular as próprias emoções; imagina terem que ensinar essa regulação a uma criança.
Por isso, no tratamento psicoterápico de uma criança ou um adulto com sua criança interior ferida não é utilizada a palavra “culpa”, pois essa desregulação das emoções vem passando de geração em geração. Será necessário retornar ao passado, falar sobre a infância, sobre a educação que se recebeu para identificar as raízes e nortear o manejo clínico. Utiliza-se, então, a palavra “responsabilidade”, que tem sim o adulto sobre si e pelas crianças por eles cuidados ou criados. A partir de uma análise psicanalítica e da psicoterapia pode-se buscar então a ressignificação das vivências traumáticas, a quebra de padrão que vem se repetindo há gerações e a “cura” dessa criança interior machucada.
A criança não consegue entender a dificuldade dos pais com as próprias emoções, ou que precisam trabalhar fora para dar maior conforto para elas, que na vida de adulto existem muitas responsabilidades. Elas apenas vão buscando se adaptar à maneira deles, mas podem sentir que não são amadas. Por conta da subjetividade de cada um, não é possível prever como as crianças vão absorver essa vivência, e como irão expressá-la. Pode haver uma tendência dessas crianças que sentiram menos a presença e atenção, poderem tornar-se adultos que em suas outras relações irão sempre buscar agradar as pessoas, ser sempre muito “boas”, em uma tentativa inconsciente de agradar aos pais, que agradando e fazendo sempre o que os outros querem conseguem que as pessoas lhe deem atenção e presença, ou que os ame. Essa descrição foi apenas uma hipótese, pois cada caso é uma história de vida.
A lente com que enxergamos o mundo é criada também a partir dessas emoções mal resolvidas, das necessidades que não foram supridas, das situações dolorosas, de como se sentiu assustada e violada, essas experiências não desaparecem. A criança interior ferida pode causar baixa autoestima, medo de críticas, resistência às mudanças, dependência emocional com medo do abandono e da solidão, entre outros.
É possível, então, acessar nossa criança interior, é como se a pessoa agora adulta pegasse sua criança interior no colo e lhe desse o acolhimento, a nomeação e a validação dos seus sentimentos. Pode até parecer estranho de início, mas vai aos poucos causando a empatia por si mesmo, pelos pais e pelas outras pessoas que fizeram parte da vida. Algumas frases que se pode ir dizendo a si mesmo: “você está seguro agora”, “entendo seus medos e protejo você”, “você não precisa mais ser quem não é para agradar as pessoas” …
Não se deve ter pressa nesse processo, cada um tem seu tempo.
Enfim, cuidar de sua criança interior não significa ela desaparecer interiormente, significa cuidar das suas emoções que ela não soube quando era criança. Mantê-la sempre viva, com as lembranças das brincadeiras, das peraltices, da curiosidade e da alegria. Sempre que possível, ande descalço na terra, tome chuva, dê risada até doer a barriga. Enquanto há vida, o infantil viverá em nós.