“Minha filha é muito respeitada por onde ela anda, na escola, nas oficinas de teatro que participa, na nossa família e em nosso círculo de amigos”
Quando descobrimos uma gravidez, junto com ela vêm os planos para o bebê que vai chegar. Imaginamos o quarto, as roupinhas, a decoração e o mundo azul ou cor de rosa. Com a atualidade, veio ainda a tarefa de preparar o “Chá Revelação”, onde convidamos todas as pessoas especiais, que vão fazer parte da vida daquele bebê, para então ser revelada a grande surpresa: “é menino ou menina?”. Após a descoberta, anunciamos logo o nome, que claro foi escolhido pelos pais… então ali começamos a traçar a história de vida desse bebê tão esperado e já tão amado por todos. Projetamos nossas expectativas, nossos sonhos e nossos melhores desejos.
O fato é que, como pais, nem passa pela nossa cabeça a ideia de algo diferente disso: É MENINO ou É MENINA. Comigo não foi diferente… eu também fiz planos, eu escolhi as cores, a decoração do quarto e o nome para o meu menino que eu tanto sonhei. Busquei algo que tivesse um significado forte, porque eu acreditava que isso seria decisivo para ele, algo que meu filho levaria para a vida toda e essa é uma das primeiras grandes decisões que os pais tomam pelos filhos: o nome.
Com o passar do tempo, aquele bebê foi crescendo e mostrando ser diferente dos outros meninos. Ele não gostava tanto de brinquedos e preferia livros de princesas. Todas as noites ele escolhia um livro de sua coleção e me entregava para que eu fizesse a leitura: aquele momento era muito especial e foi ali que criamos um vínculo afetivo ainda mais forte.
Aos 02 anos de idade, algo parecia ser diferente: aquele menino não se interessava por brincar com crianças, preferia estar entre os adultos, possuía um vocabulário muito amplo e impecável – conjugava os verbos e trazia o plural nas falas sem nenhuma dificuldade. Com 03 anos, ele encantava as pessoas à sua volta, contava histórias de conto de fadas para todos que se achegavam e encenava peças teatrais, escolhendo o papel de cada um para compor o enredo, exceto o do personagem principal, que sempre seria ele: Branca de Neve, Cinderela, Chapeuzinho Vermelho, Aurora e então conheceu a Elsa, de Frozen. Na cabeça, costumava utilizar um cachecol para imitar um cabelo longo e isso era rotina em casa. Até então, não tive nenhum estranhamento, pois eu imaginava mesmo que ele era diferente dos outros meninos e que tinha uma sensibilidade mais aflorada. Era um menino alegre, inteligente e gentil com as pessoas.
Certo dia, após dar o banho, eu estava o trocando quando meu filho apontou para os meus seios e perguntou: “Mamãe, o que é isso?”, respondi: “É seio meu filho”. Ele disse: “Por quê o papai não tem?”, e eu respondi: “Porque ele é um menino”. Então, ele me olhou nos olhos, segurou nos meus ombros e disse: “Mamãe, se eu tiver seio você vai me amar?”, eu respondi: “Filho, a mamãe vai te amar de qualquer jeito”. Foi aí que veio a fala mais dolorosa que uma mãe poderia ouvir… ele disse: “Mamãe, eu quero voltar para dentro da sua barriga”. Perguntei qual era o motivo e ele respondeu: “Não sei, alguma coisa deu errado. Quando eu estava na sua barriga eu tinha certeza de que eu era uma menina, mas daí eu nasci assim. Deus não me fez assim…”.
A partir daquele momento, todo meu universo azul desabou, me senti totalmente perdida, sem saber como lidar com aquilo que estava acontecendo. Não podia ser, aquele menino tinha percebido que não se identificava com seu corpo, que sua mente dizia que ele era uma menina, mas o desenho do corpo não.
Meu filho, então, começou a mudar seu comportamento, passou a ser mais agressivo, chorava muito por coisas simples, não conseguia dormir mais a noite toda e passou a ter pesadelos frequentes. Apresentava enurese e encoprese (urina e fezes na roupa) e tinha crises de desequilíbrios emocionais constantes. Todos os dias, antes de dormir ele me dizia: “Mamãe, você sabe que eu não sou menino, né?” e desde então, me dei conta que não houve um só dia, desde suas primeiras palavras que essa criança se reconheceu como um menino.
Eu levaria todas as colunas desse jornal para contar os detalhes dessa história, mas eu não tenho espaço para isso. Então, resumindo: fui atrás de atendimento médico e psicológico. Após avaliação, prestes a completar 04 anos, ele foi encaminhado para o Instituto de Psiquiatria (IPq) da USP para atendimento no AMTIGOS (Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual), que acompanha crianças e adolescentes que apresentem incongruência de gênero ou não conformidade de gênero, onde após avaliação da equipe, ele foi diagnosticado com Disforia de Gênero, que é uma condição determinada pelo sentimento de insatisfação entre o sexo biológico (características genitais com que a pessoa nasce) e seu sentimento interno de pertencer ao sexo feminino (definido como identidade sexual), levando a criança (ou o adulto) ao sofrimento psíquico.
Aos 07 anos, ela continuava se identificando como menina e então foi o momento de reconhecê-la como uma MENINA TRANS, passando a utilizar o nome que ela mesma escolheu e fizemos então a transição social (usar roupas femininas, cabelo longo e tudo o que uma menina tem direito para ser reconhecida em sociedade).
Hoje, com 11 anos de idade, ela é a criança mais feliz que eu conheço. Se sente realizada, amada e segura, reconhecida como uma MENINA. Nós continuamos o acompanhamento com uma equipe multidisciplinar composta por psicólogo, psiquiatra, fonoaudióloga, pediatra, nutricionista e endocrinologista e ela tem todo o suporte que precisa para entrar na adolescência e na vida adulta, de uma forma mais tranquila e mais humana, sendo quem ela realmente nasceu para ser.
Disforia não é coisa da cabeça dos pais (pois eu tenho certeza de que eu e nenhuma outra mãe ou pai, desejou passar por essa situação). É uma questão que precisa ser levada a sério e sempre no sentido de fortalecer a autoestima e trazer conforto.
Minha filha é muito respeitada por onde ela anda, na escola, nas oficinas de teatro que participa, na nossa família e em nosso círculo de amigos. Sei que não é a realidade da maioria das pessoas trans no Brasil, mas a verdade é que a pessoa trans não nasce com 18 anos, então, meus queridos leitores, lembrem-se CRIANÇAS TRANS EXISTEM E PRECISAM SER RESPEITADAS E PROTEGIDAS.
Links úteis para divulgar:
O agendamento para triagem no AMTIGOS pode ser feito por e-mail: amtigos.ipq@hc.fm.usp.br.
ONG:@minhacriançatrans.
Por: Uma mãe pela diversidade