Desde o início da vida, o ser humano tem a necessidade de cuidados que são supridos pelos seus cuidadores que, na maioria das vezes, este papel crucial é exercido pela figura materna. Esta relação de dependência necessária é fundamental para a constituição do indivíduo-bebê, no qual passa a ser o objeto de amor da mãe, que torna o mundo acessível ao bebê, interpretando suas emoções e necessidades.
“Nesta transmissão de afetos, a mãe funciona como mediadora entre bebê e o mundo externo, e com o passar do tempo, o bebê percebe que não é o único objeto de amor e/ou desejo da mãe, pois, ela direciona sua atenção às demais atividades do cotidiano. Neste período, torna-se possível estabelecer a independência na criança, desvinculando-a da relação primária mãe-bebê, para a independência”, explica a psicóloga Abigail M. Faria. Ela ainda completa que “tal separação é extremamente dolorosa para a criança, porém, necessária para a formação da personalidade. Portanto, é neste ideal de completude que o ser humano é instigado a procurar um companheiro, amigo – justamente pelo desejo de obter atenção, amor e reconhecimento de outro alguém. Assim, cabe dizer que a dependência é inerente ao ser humano. Pois, nos momentos de fragilidade emocional, é comum que muitos indivíduos se voltem à fase inicial da necessidade de amparo”.
A necessidade torna-se patológica quando o indivíduo não compreende a si próprio nas relações, causando sofrimento intenso. Para este indivíduo, a sua felicidade só será possível mediante o outro – depende integralmente da existência e dos cuidados do outro, depositando neste a responsabilidade de si próprio para lidar com suas questões internas. É quando se pode afirmar o quadro de dependência afetiva.
Definindo Dependência Afetiva
A dependência afetiva é a inabilidade de manter e nutrir relacionamentos saudáveis com os outros e consigo mesmo, resultando em relacionamentos difíceis e destrutivos.
“Mesmo com esta definição clara acima, retratar sobre dependência afetiva é bastante complexo em nossa sociedade atual, pois se deve levar em consideração alguns padrões culturais arraigados de naturalidade, e enraizados desde que nascemos. Indivíduos são instigados a se relacionarem, fazerem amigos, constituírem família como meta fundamental da vida para ser feliz. A felicidade, portanto, é definida culturalmente na necessidade de ter alguém – isto é, se tem alguém ao seu lado, isso significa ser/estar feliz”, compreende a especialista.
Devido este padrão cultural, o fato de precisar de alguém tem gerado em muitos indivíduos o retorno à necessidade de ser amparado e suprimido, “como era na relação mãe-bebê. Indivíduos aparentemente sucedidos e mentalmente imaturos, com relações dependentes, necessidades emocionais insatisfeitas, que podem levar a relacionamentos abusivos, sentimentos de posse pela pessoa e quadros depressivos.
Se compararmos este desequilíbrio emocional com dependência química, é o mesmo efeito de um usuário de droga, que transpõe e aniquila o outro por absoluto. Infelizmente, tais relações são tão abusivas e desgastantes que os fins são trágicos”, alerta a psicóloga.
Neste contexto cabe salientar sobre alguns sintomas:
– Preocupação excessiva com o outro, na qual direciona o indivíduo a obter cuidados constantes, compulsão por ajudar e tomar responsabilidades pelo outro, antecipando as necessidades do outro, deixando as suas próprias de lado;
– Baixa autoestima, sentimento constante de culpa por tudo, autocrítica exagerada, sentimento de inferioridade pelo outro, contenta-se com o pouco que recebe, sendo qualquer gesto “suficiente”;
– Repressão das emoções, sentimentos e vontades próprias, com o tempo percebe-se perder sua identidade emocional;
– Controle sobre o outro em qualquer situação, na tentativa de querer mudá-lo;
– Ciúme doentio, no qual denota forte insegurança, prevalecendo pensamentos de medo de ser traído ou abandonado – ocasionando discussões constantes;
– Negação, acontece quando o indivíduo nega para si mesmo que os problemas não existem, não avaliando a gravidade dos mesmos, acreditando que um dia tudo pode melhorar;
– Ambivalência constante nos sentimentos, oscila entre gostar e não gostar do outro, ora se sente com raiva, ora se sente bem na relação, ora se torna vítima, ora se torna agressor com palavras, posturas e comportamentos;
– Comunicação disfuncional, não há discussão objetiva dos problemas da relação, comprometendo a eficácia do relacionamento que é o diálogo aberto e expressivo;
– Dificuldades sexuais, o sexo é percebido neste tipo de relacionamento dependente como uma conquista. Utiliza-se o sexo para atrair o outro, no sentido de manipulação e segurança para não o perder; geralmente, o sexo é realizado sem vontade e nenhum prazer;
– Indivíduos com dificuldades, carências emocionais explicitadas acima, procuram parceiros que também possuem carências emocionais, transformando o relacionamento destrutivo e desgastante ao longo do tempo.
Abigail diz que estes sintomas são alguns aspectos comuns dos quais podem ser percebidos nos relacionamentos de dependência afetiva.
Causas de dependência afetiva
“A maioria dos indivíduos dependentes afetivos obteve uma estrutura familiar disfuncional, conflitiva e fragilizada. Pressupõe-se que o dependente afetivo presenciou pouco e insuficientes sentimentos de amor, amparo, aceitação, segurança, coerência e bem estar. E neste contexto, regras, rigidez, críticas excessivas, abusos, violências psicológica e física podem ter ocorrido, e contribuído para a formação do dependente afetivo a partir então de sua infância”, explica.
Consequências da dependência afetiva
“Evidentemente, o indivíduo dependente afetivo, na tentativa de suprimir suas faltas, carências e necessidades, direciona seus impulsos para a busca de um objeto de amor/desejo para assumir o papel ‘curador’ desta angústia emocional. Quando não encontrado, há substitutos nos quais podemos aqui relacionar como a dependência química
(álcool e drogas), dependência em jogos, compulsões e/ou distúrbios alimentares, desenvolvendo quadros psicopatológicos, como transtornos severos, que, por sua vez, comprometem a sanidade mental do sujeito. Nesta trama emocional, o dependente afetivo é uma vítima de uma relação causal enredado numa teia familiar e social/cultural ao qual não aprendeu outra forma de amar, nem a si a próprio e nem ao outro de forma saudável e harmoniosa”, pondera a psicóloga.
“Vale ressaltar que nenhuma teorização é capaz de amparar toda a complexidade humana neste tipo de situação, na qual a dependência afetiva é presente. Pois, há a necessidade de mais estudos sobre o tema, que possam contribuir com alternativas para o indivíduo dependente poder lidar consigo mesmo, e consequentemente em suas relações na vida. Porém, o tratamento mais comum é a psicoterapia que proporciona um momento de reconhecimento da dependência afetiva, do sofrimento e da infelicidade. Esta abertura para a compreensão permite a ressignificação das experiências traumáticas, gerando alívio nas tensões emocionais e amadurecimento cognitivo do indivíduo.
A psicoterapia ainda possibilita no indivíduo o retorno à responsabilidade de sua própria vida e tomadas de decisão, fazendo com que o mesmo resgaste os comportamentos e sentimentos outrora não obtidos na infância, mas agora de forma amadurecida e saudável. Concomitantemente, a relação deste indivíduo consigo mesmo, e com os outros não terá a preocupação primeira de necessidade ou desejo, mas sim, de ser feliz independentemente”, conclui.